28/12/2007

MARINA ABRAMOVIC

Quando pensamos nos significados da palavra épico, geralmente ficamos atados à idéia de um relato que envolve personagens heróicos e violência. Mas em seu trabalho é o erotismo que emerge com maior destaque. Qual é seu entendimento dessa relação?
Marina Abramović: A palavra épico carrega, certamente, um significado bastante tradicional. Mas ela também se refere a lendas e maneiras complexas de contar o passado. A série “Balkan Erotic Epic” elege o erotismo como tema, dispensando as lutas e os discursos impregnados de fatos históricos. Senti-me atraída por essa idéia porque em nossa cultura consideramos apenas um tipo de erotismo, ligado à pornografia e à banalidade. Sociedades como a brasileira, italiana e mexicana estão repletas disso. Na Itália não é necessário ver filmes eróticos, basta assistir à previsão do tempo na TV. Neles, as mulheres aparecem vestidas de uma maneira que as erotiza -com roupas curtas que as fazem exibir os seios. Há sempre essa vulgarização e caricatura do que possa ser o erótico.
O que você propõe em lugar disso?
Marina: Nos Bálcãs, antes do cristianismo, do comunismo e da democracia, em uma época bem distante, havia uma série de antigas tradições que de algum modo continuam vigentes em pequenos vilarejos de áreas isoladas da ex-Iugoslávia. Nelas, o erotismo era visto de um modo completamente distinto. O termo não tinha o mesmo sentido de hoje, já que os órgãos sexuais eram vistos como ferramentas para vários objetivos. Poderiam servir como um canal de contato com a energia divina e cósmica. Eram um meio de comunicação com os deuses, de depuração do mal e de cura.
Nunca vi nenhuma imagem relacionada a eles, porque não existem registros visuais disso. Há apenas contos e fábulas que circulam entre as pessoas e algumas práticas preservadas em áreas remotas. Usei essa informação toda e fiz minha própria versão do que pode ser o épico erótico balcânico, utilizando a linguagem contemporânea do vídeo para gravar a reencenação desses rituais.
Essa espécie de rituais pode ser compreendida hoje?
Marina: Todas as culturas apresentam algum exemplo delas. Na África, é famosa a tradição das mulheres que devem lançar seu sangue na terra em determinadas circunstâncias. Já no Brasil, temos o candomblé.
O que você tenta sugerir com o erotismo?
Marina: Mostro explicitamente falos e vaginas, mas não como uma revista pornográfica, e sim como um estímulo para que se reflita sobre isso de outra maneira. Em algumas religiões da Índia, o erotismo ainda está ligado à espiritualidade. Na cultura ocidental, porém, perdemos completamente isso. Um dos meus vídeos representa o ritual em que as mulheres de vários vilarejos, jovens e velhas, costumavam levantar as saias desesperadas, para mostrar as suas genitálias e tentar fazer parar a tempestade, antes que ela inundasse e arruinasse as plantações.
Outra obra importante é a que exibe uma fileira de homens com o pênis ereto, enquanto uma mulher canta. Não costumamos ver o órgão masculino ereto e estático nos filmes, ele sempre está envolvido no ato sexual ou escondido. Quando o mostramos desse modo, transformamos tudo e as pessoas começam a pensar sobre o tipo de energia que o pênis simboliza. Força masculina que pode levar à guerra e à violência, mas também ao amor e à ternura. É algo que podemos modificar e empregar de maneiras distintas, especialmente em afirmativas nacionalistas, representando a dignidade e o orgulho da nação. A canção no vídeo fala de guerra e dá outro significado para a imagem.
Dá para imaginar que foi difícil conseguir filmar esses trabalhos. Como foi a seleção de elenco?
Marina: Para produzir esses vídeos levei dois anos para encontrar as pessoas certas, uma vez que não usei atores. Eram todos moradores da região de Belgrado. O making of desse trabalho é hilário. Foi um inferno explicar ao elenco como deveria representar esses rituais. Mas não só isso, como também conseguir que o grupo acreditasse realmente no que estava fazendo. No começo, as mulheres do vídeo da chuva pareciam apenas estar correndo de um lado para o outro de modo ridículo. Só mais tarde a cena atingiu um aspecto verdadeiro. Algumas mulheres selecionadas conheciam essas histórias que haviam ouvido das avós. Especialmente as mais velhas. Mas para elas também não era fácil exibir a vagina. Então, conversei com elas e tive que mostrar como deveria ser feito. A comunicação foi importante para que eu estabelecesse a confiança. Em outras cenas, sou eu mesma que atuo.
O que você pensa sobre o valor sagrado atribuído a vida?
Marina: Os seguidores da religião sufista têm um entendimento interessante sobre isso. Eles dizem que a vida é um sono e a morte é o despertar. O contrário do que pensamos. No catolicismo e cristianismo em geral, sempre sentimos culpa por fazer algo e devemos cultuar alguém que está apartado de nossa realidade. Tenho bastante interesse pelo budismo tibetano, porque não parece uma religião, mas sim uma ciência da mente. Aprecio a idéia de que não necessitamos de nada para ser exaltado fora de nós mesmos, uma vez que já somos completos.
Somos o corpo e o universo ao mesmo tempo. Essa é uma das razões por que venho fazendo performances durante as últimas décadas: há muito para ser descoberto dentro de nós mesmos, para que entendamos como funciona todo o resto. Cada mineral ou substância do cosmos está presente no ser humano. Não necessitamos olhar para fora, mas sim para dentro. Não sou religiosa, porque para mim a religião é uma instituição, e não gosto de instituições. Acredito na verdade em energias e espírito.
Você falou sobre antigos rituais de cura e dos atuais problemas da sexualidade. Que papel os genitais podem ter no mundo de hoje?
Marina: Deveríamos voltar ao passado e redescobrir o poder do erotismo e dos nossos órgãos sexuais. Na filosofia tantra, vários exercícios utilizam o sexo para a conquista da iluminação. A energia sexual é a única que temos, não há nada além. É a responsável pela reprodução, que dá origem a uma nova vida. Podemos confiar em outra coisa, achar que a energia intelectual nos levará à espiritualidade. Mas a energia verdadeira é a sexual, embora não saibamos como utilizá-la. São raras vezes em que compreendemos bem do que estamos falando.
Esse problema se deve a nosso modo de vida, à nossa falta de tempo. Apesar de termos desenvolvido a tecnologia para estarmos menos ocupados, não temos tempo, não sentimos o ambiente e o magnetismo da terra, porque a cobrimos com concreto, mármore e carpetes. Estamos cada vez mais distantes da natureza e da nossa própria intuição. Creio que uma das funções da arte é apontar para outra direção. Mesmo que não consiga responder todas as questões, pelo menos fornece pistas e amplia a consciência.
Qual é a sua opinião sobre as restrições ao sexo como formas de controle político?
Marina: É a coisa mais monstruosa que temos! Creio que muitas guerras são baseadas não apenas em razões políticas, mas também em repressão sexual. Porque quando não há um uso saudável dessa energia, a sociedade se torna doentia. Mas o mundo não é preto e branco e o erótico está imerso em muitos fatores. Não digo que se as pessoas não fazem sexo, iniciam a guerra. Mas, com certeza, isso é uma parte do processo. Nos países muçulmanos, as limitações à energia sexual e à mulher são tão severas que conduzem a situações bastante nocivas.
As tradições do passado impunham ritos e regras ao erotismo. O sexo sem orientações, totalmente livre, não é arriscado também?
Marina: O excesso de qualquer coisa é perigoso. Uma taça de vinho está bem, mas beber três garrafas pode ser ruim. Se você faz sexo 20 vezes ao dia torna-se uma obsessão. É uma questão de saber a medida. Porque de outro modo chegamos a um desequilíbrio antinatural. Isso não quer dizer que tenhamos de ser monogâmicos ou poligâmicos. Porém cada um deve ter a liberdade de viver e satisfazer seu desejo de modo balanceado e com envolvimento emocional, pois não creio que se possa amar dez pessoas em uma mesma semana.
Além disso, temos que considerar o contexto geral, que não se limita a fazer sexo ou não, mas sim ao que praticamos como seres humanos. Necessitamos entender nossa própria energia e qual é a nossa finalidade neste mundo. Esse sempre foi o meu maior questionamento. O sexo faz parte desses propósitos, não é algo isolado.
O que deve ser feito então?
Marina: Minha idéia é de que todos necessitam “limpar a casa”, ou seja, purificar a si mesmos. Nos esquecemos de que o corpo é uma casa, onde costumamos enfiar muito lixo. Temos que nos esvaziar para que possamos receber. Se não, viveremos como lixeiras abarrotadas em que não se pode incluir nada. Essa limpeza evoca o ascetismo, doutrina em que as pessoas passam um tempo sem comer e sem falar, apenas bebem água e meditam. Carecemos da natureza mais do que em qualquer período anterior.
A vida urbana é uma armadilha. Todos são neuróticos, ninguém tem tempo. O Dalai Lama disse uma vez que não quer reencarnar mais. Ele pergunta a seus discípulos por que fazê-lo? Não há sentido, a Terra está rumando para um desastre terrível. Tantos ainda terão de morrer nas guerras para que a consciência da sociedade evolua do atual estado de paralisia e as pessoas entendam o mal que estão causando…
Em várias performances anteriores, você colocou em risco o seu próprio corpo. Gostaria de lhe perguntar sua opinião sobre a dor física e a dor mental.
Marina: A dor não é importante, mas sim o medo que sentimos dela. Porque o temor é inimigo óbvio do ego. Nosso medo é permanente porque somos temporários e vamos morrer. Então, temos de analisar e entender isso. Chegar o mais perto possível da morte para compreender melhor como ela é e nos livrarmos do medo da dor. Em uma performance, represento a dor, não a encontro por acaso. Quando a mostro ao público, é como se ele pudesse olhar em um espelho e ver que pode suportar o mesmo que eu consigo suportar. A questão mais relevante é que nunca vivemos no momento presente, sempre estamos pensando no passado ou no futuro. Mas o agora é mais importante, porque é o único tempo seguro. O passado já foi e o futuro ainda não aconteceu. Em uma performance, é preciso que se tomem atitudes extremamente arriscadas para concentrar a atenção no presente. Um instante em que eu e o público realmente nos vemos, nos comunicamos e elevamos o espírito.
Existem muitas performances ruins, que não surtem resultados, embora os espectadores sintam o medo, a insegurança ou a sedução. Se você tem a disposição de executar algo tão ousado, então o tempo pára. Costumo realizar performances longas e essa dilatação do tempo está incluída. Não quero que o público passe um momento comigo observando uma apresentação. Desejo que se esqueçam do tempo, que estejam em um espaço atemporal. Alguns pensam que performance é entretenimento, mas não é. A verdadeira performance é um inferno, tanto para o artista quanto para quem assiste.
Publicado em 4/11/2006

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